É possível parar o carnaval?
O Brasil tem chances reais de, em 2021, viver algo inédito. Desde que os festejos carnavalescos começaram por aqui — o que, segundo pesquisadores, ocorreu à época da chegada dos portugueses, no século 16 —, eles nunca deixaram de ser celebrados no período que antecede a Quaresma, em fevereiro ou no começo de março. Porém, devido à pandemia de covid-19, o adiamento ou cancelamento da festa é debatido pelos governos das maiores cidades do país. Enquanto São Paulo adiou para data indefinida e Brasília optou por não realizar a folia, Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Olinda ainda discutem como agir.
Não se trata de uma decisão simples. E não devido ao prejuízo econômico e cultural que ela pode representar, afinal, a saúde pública deve ser priorizada. Mas, sim, porque a estratégia pode não dar certo. É o que alerta a história. Afinal, as duas tentativas oficiais de adiar a festa de Momo no Brasil fracassaram. A primeira ocorreu também por questões sanitárias, em 1892, quando o país lidava com uma série de doenças, como a febre-amarela. A segunda se deu em 1912, devido à morte do Barão do Rio Branco, então ministro do Exterior e tido como herói nacional.
No fim do século 19, buscando evitar a aglomeração de pessoas no calor de fevereiro, os governantes decidiram transferir os festejos para junho, no inverno. “Adiaram, por decreto, para o último fim de semana de junho, que inclusive coincide com as festas de São João. O que aconteceu? Chegou o carnaval, foi todo mundo para a rua, mesmo que houvesse o decreto. A Prefeitura (do Rio de Janeiro, capital federal à época) até tentou fazer controles policiais, fechando as lojas que vendiam produtos temáticos, proibindo salões onde ocorriam os bailes de abrirem, mas nada disso adiantou”, detalha Leonardo Bruno, pesquisador-orientador do Observatório de Carnaval do Museu Nacional.
Na outra tentativa, o motivo era o luto pela morte do Barão do Rio Branco, que aconteceu a uma semana da festa. “O povo sofreu muito e decretou-se o adiamento para dois meses depois, em abril. Em princípio, parecia algo sensato, mas, quando chegou o sábado de carnaval, o povo foi para a rua afogar as mágoas e acabou o luto. Efetivamente, aconteceram dois eventos. Os registros históricos trazem até uma marchinha que o povo cantava na rua dizendo que, se o barão morreu e a gente teve duas festas, imagina quando morrer o general”, conta Bruno.
“Nos dois casos, não adiantou nada. A folia aconteceu na data normal e na data transferida. Foram duas transferências tentadas que não tiveram sucesso. Ou foram um grande sucesso e as pessoas tiveram dois carnavais”, brinca Felipe Ferreira, professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e criador do Centro de Referência do Carnaval.
As guerras, a gripe espanhola e o maior carnaval de todos os tempos
Apesar do nome, a doença não surgiu na Espanha, mas os jornais do país europeu noticiaram a sua existência primeiro — visto que, pelo fato de o país estar neutro na guerra, não sofria com a censura. Não se sabe exatamente a origem, mas o primeiro registro oficial se deu nos Estados Unidos, em março de 1918.
As duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) também não impediram a realização do carnaval no Brasil, a despeito de tentativas das autoridades. De acordo com o professor Paulo Miguez, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o país teve participação pequena no primeiro conflito, enviando poucos militares à Europa apenas no fim dele, ou seja, após a folia de 1918. À época, chegou-se a discutir a realização dos festejos, mas eles ocorreram normalmente. Na Segunda Guerra, contudo, o Brasil teve maior participação. “Oficialmente, tudo foi feito para impedir. Recursos públicos foram interditados, mas a festa aconteceu mesmo com os pracinhas na Itália. As muitas proibições acabaram dribladas”, explica.
Além do fim da Primeira Guerra, 1918 ficou marcado pela gripe espanhola, até hoje a mais violenta pandemia da história, que deixou de 20 a 40 milhões de mortos — mais até do que a Primeira Guerra, que fez 15 milhões de vítimas. No Brasil, segundo o Atlas Histórico da Fundação Getulio Vargas (FGV), foram cerca de 35 mil óbitos. Até mesmo o presidente eleito, Rodrigues Alves, morreu vítima da doença antes de tomar posse. É fácil presumir que, diante da tragédia, o carnaval não fosse realizado. Mas aconteceu exatamente o contrário.
A festa de 1919 é tida, até hoje, como a maior de todos os tempos. “A gripe chegou, arrasou, matou milhares, mas em determinado momento ela foi embora, por volta de outubro, novembro. Isso fez com que o evento do ano seguinte, segundo todos os relatos, tenha sido o mais louco de todos os tempos, dos mais irreverentes que se tem notícia. O povo foi para a rua com a necessidade de celebrar o fim daquela coisa terrível. Além disso, depois de uma tragédia como essas, havia o pensamento de que poderia ser o último dos carnavais”, narra Miguez.
As proporções da maior folia de todos os tempos podem ser tomadas com base nos relatos do escritor Nelson Rodrigues. Apesar de ter apenas 6 anos, ele gravou na memória as cenas daquele ano e, posteriormente, as descreveu em um artigo para o jornal Correio da Manhã — compilado no livro Memórias: A menina sem estrela:
O que esperar de 2021 e de 2022?
Diferentemente do que ocorreu com a gripe espanhola, que ficou menos de três meses no Brasil, é difícil prever quando a covid-19 — declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março — deixará de ser uma ameaça à população brasileira. Portanto, é consenso entre especialistas e autoridades consultados pelo Correio que, nesse cenário, não há condições de se realizar o carnaval em fevereiro de 2021.
Diante dessa realidade, prefeitos das cidades que costumam receber grande fluxo de turistas para a festa têm se esforçado para encontrar uma data comum. Segunda capital que mais reuniu foliões em 2020, São Paulo foi a primeira a confirmar o adiamento, sem, no entanto, anunciar para quando. Nos bastidores, os gestores municipais trabalham com os meses de maio, junho e julho como possibilidades. Ainda não se sabe, porém, quando o martelo será batido.
Pesquisadores alertam que, dado o histórico da festa no Brasil e os vastos exemplos de desrespeito ao distanciamento social observados desde o início da pandemia, as autoridades devem levar em conta a possibilidade de manifestações espontâneas. “Pode haver uma desmobilização dos festejos formais, dos blocos tradicionais, do desfile das escolas de samba... Essa festa institucionalizada é possível que não ocorra, mas acho pouco provável que não haja gente na rua. As praias e os bares lotados, hoje, são um ótimo exemplo disso. O que faria a gente acreditar que daqui a seis meses o povo não vai para a rua?”, resume Leonardo Bruno.
Os outros especialistas endossam a opinião do pesquisador do Museu Nacional. “É muito provável que grupos de amigos, ou até mesmo pessoas sozinhas, iniciem um tipo de manifestação carnavalesca e, naturalmente, aquilo vire um bloco de proporção maior”, pontua a pesquisadora Rita Fernandes, autora do livro Meu bloco na rua. “É tudo muito inédito, são muitas variáveis. A única coisa que se tem certeza é que não dá para ser irresponsável e nós, que fazemos isso de forma organizada, motivarmos um carnaval em um momento em que ele não pode acontecer”, ressalta Fernandes, que também é fundadora e presidente da Sebastiana — Associação Independente dos Blocos de Carnaval de Rua da Zona Sul, Santa Teresa e Centro da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro — liga que reúne alguns dos mais tradicionais blocos do Rio.
Sobre a possibilidade de um adiamento, porém, os pesquisadores têm opiniões divergentes. Para Paulo Miguez, a mudança de data pelo menos amenizaria os impactos econômicos: “A transferência atende a dois interesses: à vontade de fazer festa, mas, especialmente, à economia da festa. O carnaval afeta desde o nanonegócio, do cara que vai para a rua catar latas de cerveja, até aqueles que trabalham nos camarotes, nos trios, os músicos. Com o adiamento, toda essa indústria cultural vai poder se organizar, com perdas, mas vai fazer o que não foi feito em fevereiro”.
Rita Fernandes, por outro lado, lembra que a Terça-feira Gorda é apenas o ápice de uma celebração que começa muito antes, com as festas de pré-carnaval, em janeiro, e defende que o evento fique para 2022. “Se a gente não puder fazer na data, o que fizermos depois será apenas uma celebração, não, o carnaval. É muito difícil recriar esse espírito carnavalesco. Não dá, por exemplo, para pensar em tirar o réveillon do fim do ano”, avalia. “A gente tem que respeitar o ciclo das festas tradicionais. Não concordo com o adiamento. Entendo a necessidade pelo lado de quem move uma economia forte em relação a isso, como é o caso das escolas de samba. Talvez seja importante por mover uma cadeia produtiva enorme que precisa ser ativada. Mas, uma folia fora da data seria apenas uma expressão”, acrescenta.
Independentemente de ser realizado no meio de 2021 ou apenas em 2022, o próximo carnaval deve repetir o que houve em 1919, após a gripe espanhola, acredita Miguez. “Será o maior de todos os tempos, celebrando a vitória da vida e da ciência”, projeta o docente da UFBA. “Baco e Momo (figuras das mitologias romana e grega, respectivamente, ligadas a festas e celebrações) vão ficar nos devendo este ano, mas vão preparar algo grande para o próximo”, completa.
Prejuízos vão além do financeiro
Quando se fala nos prejuízos que um adiamento ou cancelamento do carnaval podem causar, é fácil pensar no aspecto financeiro. E ele, de fato, tem um peso enorme. Somente neste ano, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Olinda (PE) reuniram 43,5 milhões de foliões, segundo dados das secretarias estaduais, compilados pelo Ministério do Turismo. A movimentação na economia foi de cerca de R$ 8 bilhões, de acordo com a Confederação Nacional do Comércio (CNC).
A incerteza acerca da realização da festa em 2021 já começa a mostrar impactos. As reservas em hotéis estão praticamente zeradas nessas cidades, a venda de abadás em Salvador está bem aquém do que se costuma registrar a esta altura do ano, assim como a procura por passagens aéreas para os destinos mencionados. “Houve uma mudança de comportamento dos viajantes. As compras de passagens para os destinos nacionais tradicionalmente mais procurados para o carnaval apresentaram queda significativa no último trimestre”, explica, em nota, a empresa de revenda de bilhetes aéreos MaxMilhas.
É preciso, porém, levar em consideração, também, o impacto cultural. O Brasil ser afamado como a terra do carnaval não é em vão. Além de ter alcançado marcos globais — em 1995, o Galo da Madrugada, em Recife, foi considerado o maior bloco carnavalesco do mundo pelo Guinness Book, mesma publicação que reconheceu a folia em Salvador como o maior carnaval de rua do planeta em 2005 —, o país tem os festejos intimamente ligados à construção de sua história.
Há relatos de celebrações carnavalescas no Brasil desde a época da colonização. A origem do carnaval como conhecemos, contudo, remonta ao século 17, com a chegada do entrudo ao país. “O entrudo é uma festa trazida da Europa, em que as pessoas jogavam água, limão e água de cheiro umas nas outras. Uma brincadeira quase infantil, mas que, conforme foi adquirindo as características da cidade e se espalhando não só entre os nobres, foi ganhando outras facetas. Chega um momento em que as brincadeiras ficam violentíssimas, as pessoas passam a jogar urina, farinha e ovo podre, e a nobreza não quis mais participar”, relata Leonardo Bruno.
Com essa divisão de classes, tão marcante no país ao longo da história, é que a folia do Momo se desdobrou nas mais diversas manifestações observadas hoje. “De 1800 para 1900, com a República instalada, o Brasil queria se enxergar como a Paris dos trópicos. Então capital federal, o Rio fez uma série de mudanças urbanísticas para se configurar como uma cidade à moda europeia. E a festa sofre influências daí. A nobreza começa a importar determinados eventos da Europa, como os bailes de máscaras e os desfiles da alta sociedade em carros. Mas o povo também estava criando suas formas de festejos, como os blocos, que eram procissões religiosas, com cânticos típicos. E nos anos 20, efetivamente, surgem as primeiras escolas de samba”, acrescenta o pesquisador.
Tudo posto, é impossível mensurar o impacto de um ano sem carnaval para a identidade brasileira. Com a palavra, os especialistas:
Como cada setor envolvido — de ambulantes a artistas, de comunidades a gestores públicos, de bares e hotéis a companhias aéreas — vem se preparando para lidar com os prejuízos do adiamento ou do cancelamento do carnaval em Salvador (BA), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Recife e Olinda (PE) e Brasília (DF) é o que você confere nas próximas reportagens deste especial.
Salvador: carnaval fora de época (mesmo)
Festa na capital baiana, que atraiu 16,5 milhões de foliões em 2020, deve ser remarcada para o meio do ano
“Sereia chegou morta ao hospital. E o impossível aconteceu: o carnaval da Bahia parou.” No livro O canto da Sereia, o jornalista Nelson Motta precisou recorrer à ficção para encontrar um acontecimento capaz de interromper a folia de momo em Salvador. E é mesmo difícil imaginar uma força que pare a enorme engrenagem cultural e econômica em que a festa — considerada a maior do mundo pelo Guinness Book em 2005 — se transformou. Em 2020, segundo dados da Secretaria de Turismo do estado e da Prefeitura, o evento movimentou R$ 1,25 bilhão, com geração de 215 mil empregos temporários, tendo atraído um número recorde de 16,5 milhões de foliões e envolvido 12,5 mil artistas, que promoveram 2,6 mil horas de música. Tudo isso em apenas 10 dias.
Mas a realidade, não raro, supera a arte. No fim de 2019, começaram a surgir em Wuhan, na China, os primeiros relatos de uma doença tão ou mais letal que a bala que matou Sereia em cima do trio elétrico. Não demorou para o novo coronavírus percorrer os 16,6 mil quilômetros que separam as duas cidades e chegar a Salvador, deixando mais de 2 mil mortos na capital baiana. E o impossível aconteceu: o carnaval da Bahia, pela primeira vez na história, não deve ser realizado em fevereiro ou março.
O prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM), avalia como “muito improvável” a ocorrência da folia na data convencional, e afirma considerar o adiamento para junho ou julho. “Conversei com muitos especialistas e todos têm a mesma opinião: ainda que a vacina seja liberada este ano, ela não terá alcance de massa para 2020. Sendo assim, temos de trabalhar com a realidade e mudar o calendário, alterar datas, mudar o formato, mas tudo isso vai ser anunciado na hora e na forma certas. Não temos um protocolo possível para autorizar eventos nos moldes que estamos acostumados”, explica o gestor, que busca um consenso com outros prefeitos para a realização simultânea da festa: “O ideal, claro, é que haja uma decisão conjunta”.
Chegar a esse consenso não é tarefa fácil, mesmo dentro do estado. O carnaval movimenta uma cadeia produtiva que vai desde os trabalhadores informais, como ambulantes e cordeiros, até os artistas, com seus cachês na casa dos milhares, quiçá milhões. Todas as categorias parecem concordar com a impossibilidade de se realizar a festa em fevereiro. “O mais importante é a vida das pessoas”, destacam, quase em uníssono. O período aventado para o adiamento, porém, é controverso.
Para o setor de bares e hotéis, a mudança para julho representaria um choque com outra época que também é considerada alta temporada. “Salvador tem 400 hotéis e 26 mil bares e restaurantes. O réveillon e o carnaval representam o 13º mês da economia para o turismo. É com ele que a gente passa a baixa situação de março até 30 de junho”, ressalta Silvio Pessoa, presidente da Federação Baiana de Hospedagem e Alimentação (FBHA).
Ele também rechaça os meses de maio — por ser chuvoso — e junho — pelos festejos de São João — como possibilidades, e diz preferir aguardar a retomada do setor para uma decisão definitiva: “Neste momento, 95% dos hotéis estão fechados por decisão gerencial, não por decreto. A maioria está com programação até dezembro apenas. Não vale a pena discutir (a nova data) enquanto as coisas não normalizarem.”
Cordeiros são os profissionais que seguram as cordas para separar o bloco (evento pago, cujo acesso se dá pelo abadá) da pipoca (foliões que curtem a música na rua, sem pagar)
Diretor do Sindicato dos Trabalhadores Cordeiros (Sindcorda), Percival Bispo levanta outra preocupação: a de que uma eventual imunização ainda não esteja disponível para todas as pessoas. “Quem garante que essa vacina vai ser para todos? Se for doada pelo governo, menos mal, mas, mesmo assim, ainda vai ter dificuldade. Se for pago, nem todo mundo tem o valor para pagar. Muitas categorias não vão estar vacinadas. Os cordeiros são as pessoas mais fracas que vivem daquilo”, pondera o representante dos trabalhadores cujo piso salarial é de R$ 53 por dia.
Por outro lado, José Augustto Vasconcelos, sócio do San Sebastian — grupo que detém parte dos blocos de Claudia Leitte, Alinne Rosa e Ivete Sangalo, e é responsável pelas vendas dos de Daniela Mercury — vê em julho a única possibilidade de realização da festa fora de fevereiro. “Junho atrapalharia as festas juninas, que no Nordeste são muito forte, seria ruim para os produtores dos dois eventos. Setembro e outubro, por exemplo, ficaria muito perto do próximo carnaval”, avalia.
Incerteza trava mercados
A própria indefinição acerca de uma data, ou mesmo da realização do evento, é suficiente para provocar grandes prejuízos aos setores envolvidos. As compras de passagens aéreas apresentaram “queda significativa no último trimestre”, de acordo com a empresa de revenda Maxmilhas. Quase a totalidade dos hotéis, como frisou Silvio Pessoa, está com as portas fechadas — apesar de, segundo ele, as reservas para o carnaval só começarem a ser feitas mais perto do fim do ano.
A estagnação se repete no mercado de abadás — característico da folia baiana. “Tivemos uma venda inicial logo depois da festa deste ano, mas a partir de março houve uma queda substancial. Em geral, a comercialização é bem distribuída. Temos uma largada muito forte, com cerca de 20% dos produtos sendo vendidos. Durante o ano, o ritmo diminui e volta a aquecer no segundo semestre. Na metade do ano talvez tivéssemos comercializado algo em torno de 30% a 40%”, explica Joaquim Nery, diretor da Central do Carnaval e do bloco Camaleão, puxado pelo cantor Bell Marques.
No grupo San Sebastian, José Augustto Vasconcelos lembra que, a esta altura em 2019, 80% a 90% das fantasias haviam sido compradas. O Coruja, de Ivete Sangalo, já tinha dias esgotados. Em ambas as empresas, os produtos seguem à venda. “Não estamos fazendo nenhuma campanha estimulando vendas, mas elas continuam abertas, porque, caso haja o carnaval — e essa expectativa ainda existe —, a gente estaria preparado para fazer”, acrescenta Nery.
Entre os cordeiros, o clima, na definição de Percival Bispo, é de “desespero total”. “São 60 mil profissionais que trabalham no período. Muitos sobrevivem daquele trabalho o ano todo. Não havendo, é um pouco complicado. É menos um ganha pão”, diz o diretor do Sindcorda.
Representantes de uma das mais tradicionais manifestações carnavalescas de Salvador, os blocos afro, que chegam a empregar de 500 a 1.000 pessoas direta ou indiretamente todos os anos, também temem os prejuízos, tanto financeiros quanto culturais. “Muitos colaboradores da cultura vivem do que apresentamos, vivem de entretenimento”, pontua Albry da Anunciação, diretor da Associação do Coletivo de Entidades Carnavalescas de Matriz Africana (Acema).
Ele conta ainda que as lives se tornaram uma opção para mitigar as perdas. Para o carnaval — independentemente de data —, no entanto, Anunciação espera que as entidades possam desfilar completas, no modo tradicional. “Tudo tem que estar muito bem calçado com a não propagação do vírus, com a segurança da saúde das pessoas, mas a ideia é que a gente saia com nossos associados, como um bloco mesmo.” O principal, salienta, é o sorriso no rosto: “É a nossa maior propaganda”.
Vozes da folia
A história da festa na Bahia tem, ao menos, três datas fundamentais: 1884, tido como o primeiro ano de desfiles nas ruas; 1950, com a criação do trio elétrico por Dodô e Osmar; e 1985, brindado com o lançamento do disco Magia, de Luiz Caldas, que apresentou ao Brasil o hit Fricote, considerado o marco inicial do movimento que, mais tarde, viria a receber o nome de axé music. Filho de Osmar, Armandinho Macêdo subiu na invenção do pai pela primeira vez aos 10 anos e nunca mais desceu. Hoje, aos 67, ele diz ser muito difícil pensar que o evento pode não ocorrer na data esperada, mas defende que a segurança dos foliões deve estar em primeiro lugar: “Quero sim que tenha, mas quero um carnaval seguro e que dê garantia, que essa pandemia esteja sob controle. Aí sim vai ser uma festa feliz. Provavelmente não vai ser em fevereiro, pode ser no meio do ano ou até no ano que vem”.
Pai do axé, Caldas segue na mesma linha. “Fazer sem uma vacina seria uma loucura em qualquer circunstância, porque se trata de uma festa grandiosa e de uma aglomeração, que talvez seja uma das maiores do país”, avalia. “Em primeiro lugar, vem a vida do ser humano, em segundo lugar vem a festa, o trabalho, seja o que for. Sem vida ninguém faz nada”, completa.
A surpresa ante o ineditismo da situação atinge todos os artistas ouvidos pelo Correio. Desde os veteranos até os que participam dos festejos há menos tempo. “É muito estranho e triste, todos nós estamos sofrendo muito e com muitas incertezas, mas temos que ter fé, pensar no próximo e pedir a Deus que nos proteja”, desabafa Bell Marques, que celebrou, em 2019, 40 anos de carreira. “Nunca me vi fora do carnaval, até porque é uma vitrine gigantesca para divulgar nossas músicas”, emenda Léo Santana, dono de alguns dos maiores sucessos recentes da folia soteropolitana. A necessidade de se esperar o momento de realizar o evento com segurança, contudo, é uma unanimidade. “Entendemos que qualquer medida que venha a ser tomada é pelo bem da população, que precisa ser preservada. Não podemos colocar ninguém em risco”, enfatiza Pipo Marques, da dupla com Rafa.
Saiba o que pensam os artistas:
Bell Marques
“São mais de 40 anos só de trio elétrico, uma vida curtindo e trabalhando nessa festa, que é muito especial pra gente, pro Brasil, pro Estado e pra cidade, que ganha muito com ela. É muito triste a gente pensar em não ter carnaval, mas é claro que a gente compreende que as medidas que venham a ser tomadas têm um objetivo muito correto, que é o de proteger a população. Sou sempre a favor do bem-estar do folião, que é quem faz a festa” (Foto: Fabio Cunha/Divulgação)