As freiras que ajudaram a desvendar alguns dos maiores mistérios sobre o Alzheimer
Um estudo prestes a completar 40 anos contou com a rara participação de integrantes de uma ordem católica — e permitiu entender mecanismos fundamentais por trás da perda de memórias e da dificuldade de raciocínio.
As irmãs Alcantara (à esquerda), de 91 anos, Claverine (ao centro), 87, e Nicolette, (à direita), 94, foram três das voluntárias do Estudo das Freiras. Foto tirada em 2001 - (crédito: Getty Images)
O ano era 1986. O epidemiologista e professor de neurologia David A. Snowdon começava a investir num projeto inusitado: acompanhar centenas de freiras para entender os fatores por trás do envelhecimento e do desenvolvimento de diversos tipos de demência, como o Alzheimer.
Passadas quase quatro décadas, o chamado Nun Study (ou "Estudo das Freiras", em tradução livre) ajudou a desvendar alguns dos principais mecanismos por trás das falhas de memória e do raciocínio — e é celebrado como um "divisor de águas" por especialistas da área.
Essa pesquisa permitiu entender, por exemplo, o papel da reserva cognitiva — e da educação — na prevenção da demência. Ela também ajudou a identificar genes que aumentam o risco de Alzheimer. E ainda descobriu que várias doenças simultâneas podem levar ao apagamento das lembranças no cérebro.
Mas o trabalho não acabou: graças aos avanços na digitalização de documentos e à inteligência artificial, os responsáveis pelo projeto apostam que o Estudo das Freiras ainda vai responder mais perguntas sobre essa enfermidade, que já afeta 55 milhões de pessoas ao redor do mundo.
Conheça a seguir por que esse trabalho prestes a completar 40 anos é tão celebrado por cientistas — e os detalhes do que ele ajudou a entender sobre o Alzheimer.
As irmãs Alcantara (à esquerda), de 91 anos, Claverine (ao centro), 87, e Nicolette, (à direita), 94, foram três das voluntárias do Estudo das Freiras. Foto tirada em 2001 - (crédito: Getty Images)
O ano era 1986. O epidemiologista e professor de neurologia David A. Snowdon começava a investir num projeto inusitado: acompanhar centenas de freiras para entender os fatores por trás do envelhecimento e do desenvolvimento de diversos tipos de demência, como o Alzheimer.
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As irmãs Alcantara (à esquerda), de 91 anos, Claverine (ao centro), 87, e Nicolette, (à direita), 94, foram três das voluntárias do Estudo das Freiras. Foto tirada em 2001
Condições únicas e riqueza de detalhes
Snowdon, que hoje está aposentado, conseguiu uma coisa rara: ele convenceu um grupo de freiras católicas enclausuradas da ordem das Irmãs Escolares de Nossa Senhora a participar de um estudo científico.
Mas ele estabeleceu algumas condições para que elas fossem aceitas como voluntárias, como conta um artigo recém-publicado sobre o tema.
A primeira era que as irmãs deveriam fazer exames anuais, para avaliar como estava o estado cognitivo e físico. A segunda era que elas deveriam compartilhar o histórico médico e outros documentos relevantes, como diários ou cartas que escreveram assim que entraram no convento. O terceiro e último ponto: todas deveriam concordar em doar o cérebro após a morte.
No total, 678 freiras toparam o desafio. No início da pesquisa, em 1991, todas estavam com mais de 75 anos e moravam em diferentes conventos da ordem religiosa espalhados por sete cidades dos Estados Unidos. Todas elas já faleceram.
O estudo começou a ser conduzido na Universidade de Minnesota. Depois, foi transferido para a Universidade do Kentucky. Após a aposentadoria de Snowdon, o trabalho voltou à Universidade de Minnesota, passou pela Universidade de Northwestern e agora é realizado no Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Texas em San Antonio (UT Health San Antonio).
Mas por que avaliar um grupo como esse pode ser tão valioso?
"Esse estudo é um divisor de águas porque ele avalia uma população muito homogênea", responde a médica Sonia Brucki, coordenadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Ou seja: o Estudo das Freiras reuniu um grupo de mulheres cujo estilo de vida era muito similar.
Todas elas entraram para o convento ainda jovens, entre o fim da adolescência e o início da vida adulta. Além disso, não bebiam, tinham uma dieta parecida, um mesmo nível socioeconômico, um padrão comparável de atividade física e intelectual, acesso aos serviços de saúde…
"Com isso, fica mais fácil evitar possíveis fatores de confusão e ver o impacto de alguns elementos específicos no desenvolvimento da demência, como a educação e o estímulo cognitivo em diferentes fases da vida", complementa Brucki.
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A pesquisa com as freiras americanas revelou como a construção de uma reserva cognitiva é importante para atrasar o aparecimento de sintomas da demência
A importância de uma 'poupança' cerebral
Os especialistas consultados pela BBC News Brasil foram unânimes em afirmar que a maior contribuição do Estudo das Freiras está relacionada ao conceito de reserva cognitiva e resiliência.
Lembra que as freiras toparam doar diários e cartas que escreveram?
Um dos requisitos que todas cumpriram ao entrar na ordem religiosa, quando tinham aproximadamente entre 18 e 22 anos, era a de redigir uma redação, em que contavam um pouco da própria história e das motivações que as levaram a adotar o hábito.
Ao analisar esses materiais, os pesquisadores observaram uma relação entre a complexidade das cartas escritas na juventude com a probabilidade de desenvolver demência décadas depois.
Em outras palavras, as autoras de textos mais rebuscados e profundos, com um vocabulário mais extenso e variado — sinais de uma maior habilidade linguística e um nível educacional avançado —, apresentaram um menor risco de Alzheimer na velhice
Já aquelas que escreveram cartas mais simples e menos densas, com um menor léxico ou ideias mais superficiais, tinham maior probabilidade de sofrer com a doença que afeta a memória e o raciocínio.
Esses achados ajudaram a sedimentar a ideia de reserva cognitiva — uma espécie de "poupança" cerebral que construímos ao longo da vida toda vez que nos engajamos numa atividade que estimula a mente, como ir para a escola, fazer um curso, ler um livro e aprender um novo idioma.
A neurologista Elisa Resende compara esse mecanismo que atua sobre o cérebro ao efeito dos treinos de academia sobre os músculos.
Isso porque as atividades cognitivas fortalecem e criam novas conexões entre os neurônios, conhecidas como sinapses.
Vamos pensar no caso de uma pessoa que fez muita "musculação cerebral" durante a vida e, por isso, construiu ou fortaleceu muitas dessas sinapses entre os neurônios.
"Se ela tiver uma demência, pode até perder algumas dessas conexões e vias, mas ainda terá outros caminhos para fazer tarefas cognitivas relacionadas à memória e ao raciocínio", explica Resende, que é professora da Universidade Federal de Minas Gerais.
"Agora, caso o indivíduo tenha uma baixa reserva cognitiva, ao perder as poucas conexões disponíveis, ele já começa a sentir os efeitos da doença", compara ela, que também atua na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.
A diferença aqui está no momento de aparecimento dos sintomas.
Por exemplo: uma pessoa com uma reserva cognitiva grande pode até ter as alterações cerebrais típicas de um quadro demencial a partir dos 60 anos. Mas ela só vai começar a sentir alguma diferença prática, no dia a dia, com o aparecimento de incômodos, uma ou duas décadas mais para frente.
Já um indivíduo com pouca "poupança cerebral" pode ter as mesmas transformações patológicas aos 60 anos. No entanto, sinais como os esquecimentos frequentes vão aparecer mais cedo, em três ou cinco anos.
Em entrevista à BBC News Brasil, a neuropatologista irlandesa Margaret Flanagan apresenta outro conceito importante aqui: a resiliência.
"Normalmente, pessoas com a doença de Alzheimer apresentam o acúmulo das proteínas beta-amiloide e Tau. Diferentes pesquisas mostram que, quando você tem uma certa quantidade dessas substâncias no seu cérebro, há o aparecimento de problemas de memória e demência", contextualiza a especialista, que é a atual responsável pelo Estudo das Freiras na UT Health San Antonio.
"Mas há um grupo específico de pessoas, incluindo algumas das freiras, cuja autópsia cerebral pós-morte revelou muitas placas e emaranhados de beta-amiloide e Tau que são compatíveis com a demência. No entanto, elas tinham a memória intacta, sem nenhum prejuízo cognitivo", conta ela.
Os pesquisadores querem entender se há algum outro fator, além do nível educacional, que ajuda a explicar esses cérebros mais resilientes aos efeitos da demência.
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