Há pouco mais de dois meses como presidenta da Fundação Nacional das Artes (Funarte), Maria Marighella diz ter encontrado uma instituição com dívidas e descaracterizada da função original: a promoção de políticas públicas na área da cultura. As contas estão sendo colocadas em dia com o orçamento desse ano de R$ 160 milhões. Mas a reconstrução institucional envolve desafios maiores e, portanto, mais tempo. A presidenta promete recuperar a relevância da Funarte, torná-la mais diversa em termos nacionais e promover a cultura como um vetor de desenvolvimento econômico.
Maria Marighella recebeu a equipe de reportagem na sede atual da Funarte no bairro da Cidade Nova, região central do Rio. A instituição está no local desde 2017, mas uma mudança de lar deve acontecer em breve. Conforme adiantou em entrevista exclusiva à Agência Brasil, a instituição vai voltar ao Palácio Capanema até dezembro, quando as obras no prédio estiverem mais avançadas. O movimento é simbólico pela recuperação do edifício, um marco histórico do modernismo brasileiro que o governo Jair Bolsonaro tentou vender, e também pelo esperado retorno de protagonismo da Funarte.
A nova presidenta tem currículo e experiências coerentes com o novo cargo. Ao contrário de gestões anteriores, que incluíram um assessor de vereador e até um coronel do Exército. Natural de Salvador, Marighella é formada em artes cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Trabalhou como atriz, professora e produtora teatral. Foi coordenadora de Teatro da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb) e ocupou cargo semelhante na Funarte em 2015. Também foi assessora especial da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (Secult-BA).
Em 2020, foi eleita vereadora da capital baiana (PT-BA). Durante o mandato na Câmara Municipal, assumiu a gestão do Centro de Cultura Vereador Manuel Querino e integrou comissões permanentes de cultura e de defesa dos direitos da mulher. Integrou o Conselho Municipal de Política Cultural e virou conselheira da Academia de Letras da Bahia. Para assumir a presidência da Funarte, se licenciou do cargo de vereadora em Salvador.
"Vida das artes brasileiras passa pela Funarte de algum modo', avalia Maria Marighella - Fernando Frazão/Agência Brasil
E, sim, como fica óbvio pelo sobrenome, ela é neta de Carlos Marighella, um dos principais nomes da luta contra a ditadura militar no Brasil, assassinado em 1969. A herança familiar é motivo de orgulho. Maria atuou no filme Marighella, de 2021, no papel da avó Elza Sento Sé. E diz tirar dessa ancestralidade uma “força suplementar” para encarar grandes responsabilidades, como a que tem agora pela frente na presidência da Funarte.
Agência Brasil: Você tem uma formação profissional e intelectual que passa pela interseção de diferentes caminhos como os das artes cênicas, da gestão pública e da política. Como essa trajetória foi construída até aqui, antes de assumir a presidência da Funarte?
Maria Marighella: Eu nasci em 1976 no momento em que o Brasil vivia ainda uma ditadura. Meu pai, Carlinhos Marighella, estava preso naquela época. Ele havia sido preso em 1975 na Operação Radar, comandada por Carlos Alberto Brilhante Ustra. Uma operação nacional que foi responsável pela prisão, tortura e morte de Vladimir Herzog. E na Bahia foi responsável pela prisão de dezenas de comunistas que tentavam ali reorganizar a atividade partidária, sindical e o retorno da democracia brasileira. Então, o teatro foi o meio que eu pude encontrar um lugar nessa história tão atravessada pela violência, autoritarismo e brutalidade. O teatro e as artes eram como uma dimensão restauradora da minha vida em sociedade. Estudei em uma escola fundada pela feminista Amabília Almeida, a Escola Experimental, que vai ser uma escola de grandes atores. Nela, eu começo a fazer teatro e vou depois fazer cursos de extensão na universidade. Depois vou fazer uma formação nos anos 90 que tinha o teatro de grupo como um teatro mais ativista, militante, que se conectava com outras experiências do Brasil. Embora eu tivesse a tradição da política como ancestralidade, foi no teatro que eu encontrei um ativismo e uma militância muito própria.
Ali já no final dos 1990, início dos 2000, eu passo a ser gestora de espaço cultural. E essa experiência me leva a experimentar a gestão em outras instituições. Como o Sesc, por exemplo, que me leva pela primeira vez à gestão pública em 2012 na Bahia. A Bahia no governo de Jaques Wagner passa pela primeira vez a ter uma Secretaria de Cultura em 2007. E a Fundação Cultural do Estado da Bahia, que é construída em um tempo próximo à Funarte, se torna responsável pelas políticas das artes. O secretário da época, o professor Albino Rubim, me convida para assumir a coordenação de teatro nesta fundação. Essa experiência faz com que em 2015, na segunda gestão do governo Dilma, quando Francisco Bosco preside a Funarte, eu seja convidada para a coordenação de teatro da instituição.
Só que esse período é tão intenso quanto curto. Ele é interditado pelo impeachment da presidenta Dilma, eu volto para Bahia e para a Secretaria de Cultura. E volto com uma convicção de que nós precisaríamos nos organizar politicamente em uma frente insurgente de ocupação de espaços, disputando linguagem, modos, integrando essa frente feminista, negra, indígena e LGBT na cena institucional. E em 2020, em plena pandemia, sou eleita vereadora de Salvador. Em 2022, me candidatei a deputada federal pelo PT da Bahia e tive uma votação muito expressiva, apesar de não eleita. No contexto da transição do governo Lula, fui convidada a integrar a equipe e escrever sobre a política nacional das artes e a Funarte.
E aí sou convidada por Margareth [Menezes, ministra da Cultura] por causa disso, eu imagino, para presidir a Funarte. Um convite absolutamente inesperado, que entendi como um chamado para participar daquilo que nós estamos chamando de refundação do Ministério da Cultura. E aí no retorno do Ministério da Cultura, no dia 24 de janeiro de 2023, tem o decreto que estabelece a política nacional das artes como atribuição primeira do Ministério da Cultura. Isso é absolutamente inédito para mim e significa dizer que a política nacional das artes não é apenas uma atribuição da Fundação Nacional de Artes, mas de todo o Ministério da Cultura. Então, essa é a primeira tarefa para a gente aqui, atuar nesse ministério refundado no restabelecimento das suas políticas, mas também no futuro dessas políticas na recuperação institucional dessas políticas, mas sobretudo numa necessidade de materializar no país a política nacional das artes.
"Vida das artes brasileiras passa pela Funarte de algum modo', avalia Maria Marighella - Fernando Frazão/Agência Brasil
E, sim, como fica óbvio pelo sobrenome, ela é neta de Carlos Marighella, um dos principais nomes da luta contra a ditadura militar no Brasil, assassinado em 1969. A herança familiar é motivo de orgulho. Maria atuou no filme Marighella, de 2021, no papel da avó Elza Sento Sé. E diz tirar dessa ancestralidade uma “força suplementar” para encarar grandes responsabilidades, como a que tem agora pela frente na presidência da Funarte.
Agência Brasil: Você tem uma formação profissional e intelectual que passa pela interseção de diferentes caminhos como os das artes cênicas, da gestão pública e da política. Como essa trajetória foi construída até aqui, antes de assumir a presidência da Funarte?
Maria Marighella: Eu nasci em 1976 no momento em que o Brasil vivia ainda uma ditadura. Meu pai, Carlinhos Marighella, estava preso naquela época. Ele havia sido preso em 1975 na Operação Radar, comandada por Carlos Alberto Brilhante Ustra. Uma operação nacional que foi responsável pela prisão, tortura e morte de Vladimir Herzog. E na Bahia foi responsável pela prisão de dezenas de comunistas que tentavam ali reorganizar a atividade partidária, sindical e o retorno da democracia brasileira. Então, o teatro foi o meio que eu pude encontrar um lugar nessa história tão atravessada pela violência, autoritarismo e brutalidade. O teatro e as artes eram como uma dimensão restauradora da minha vida em sociedade. Estudei em uma escola fundada pela feminista Amabília Almeida, a Escola Experimental, que vai ser uma escola de grandes atores. Nela, eu começo a fazer teatro e vou depois fazer cursos de extensão na universidade. Depois vou fazer uma formação nos anos 90 que tinha o teatro de grupo como um teatro mais ativista, militante, que se conectava com outras experiências do Brasil. Embora eu tivesse a tradição da política como ancestralidade, foi no teatro que eu encontrei um ativismo e uma militância muito própria.
Ali já no final dos 1990, início dos 2000, eu passo a ser gestora de espaço cultural. E essa experiência me leva a experimentar a gestão em outras instituições. Como o Sesc, por exemplo, que me leva pela primeira vez à gestão pública em 2012 na Bahia. A Bahia no governo de Jaques Wagner passa pela primeira vez a ter uma Secretaria de Cultura em 2007. E a Fundação Cultural do Estado da Bahia, que é construída em um tempo próximo à Funarte, se torna responsável pelas políticas das artes. O secretário da época, o professor Albino Rubim, me convida para assumir a coordenação de teatro nesta fundação. Essa experiência faz com que em 2015, na segunda gestão do governo Dilma, quando Francisco Bosco preside a Funarte, eu seja convidada para a coordenação de teatro da instituição.
Só que esse período é tão intenso quanto curto. Ele é interditado pelo impeachment da presidenta Dilma, eu volto para Bahia e para a Secretaria de Cultura. E volto com uma convicção de que nós precisaríamos nos organizar politicamente em uma frente insurgente de ocupação de espaços, disputando linguagem, modos, integrando essa frente feminista, negra, indígena e LGBT na cena institucional. E em 2020, em plena pandemia, sou eleita vereadora de Salvador. Em 2022, me candidatei a deputada federal pelo PT da Bahia e tive uma votação muito expressiva, apesar de não eleita. No contexto da transição do governo Lula, fui convidada a integrar a equipe e escrever sobre a política nacional das artes e a Funarte.
E aí sou convidada por Margareth [Menezes, ministra da Cultura] por causa disso, eu imagino, para presidir a Funarte. Um convite absolutamente inesperado, que entendi como um chamado para participar daquilo que nós estamos chamando de refundação do Ministério da Cultura. E aí no retorno do Ministério da Cultura, no dia 24 de janeiro de 2023, tem o decreto que estabelece a política nacional das artes como atribuição primeira do Ministério da Cultura. Isso é absolutamente inédito para mim e significa dizer que a política nacional das artes não é apenas uma atribuição da Fundação Nacional de Artes, mas de todo o Ministério da Cultura. Então, essa é a primeira tarefa para a gente aqui, atuar nesse ministério refundado no restabelecimento das suas políticas, mas também no futuro dessas políticas na recuperação institucional dessas políticas, mas sobretudo numa necessidade de materializar no país a política nacional das artes.
Agência Brasil: Tornar a Funarte mais conhecida da população brasileira passa pela diversificação regional das políticas públicas? Em não focar excessivamente no eixo Sul-Sudeste?
Maria Marighella: Sim, falamos em descentralização regional. Hoje, há uma expectativa imensa do Norte na conexão dessas políticas. A gente sabe que o Brasil é um país muito desigual, com oportunidades muito desiguais. E você não consegue promover igualdade, equidade e justiça social sem política pública. Mas eu falaria não só em relação às regiões. Eu falaria também numa desigualdade entre territórios, entre o que é centro e o que é periferia. A gente está falando de desigualdades de gênero, de desigualdades raciais. Quando a gente fala, por exemplo, das artes indígenas, tem um passivo enorme sobre esse tema.
Então, é preciso olhar a nacionalização não só na sua dimensão regional, mas também na dimensão redistributiva. A gente tem uma superconcentração no Sudeste, por exemplo. Mas a gente não está falando de todo o Sudeste. Está falando de dois estados, de duas capitais, dos centros dessas capitais. Os nossos desafios não são apenas regionais. Eles têm camadas muito mais complexas.
A gente está falando de políticas para as artes nas infâncias também. Vivemos agora uma crise relacionada à violência no ambiente escolar, mas nós não falamos que muitas vezes a infância e juventude brasileira estão sendo bombardeadas por um conteúdo que a gente não tem controle. Não temos uma política de composição de um conteúdo cultural e artístico. Estamos falando de uma população com deficiência que vive e não tem o direito a fluir ou produzir arte, porque a gente tem equipamentos e políticas radicalmente capacitistas.
Precisamos reivindicar outros componentes, para que realmente façamos essa cultura que é absolutamente democrática na dimensão do fazer. Ou seja, todo ser vivente é um ser produtor de cultura. Ela está em todos os lugares. É o que Antônio Pitanga dizia: “De onde eu vim, não tinha nada, mas nesse nada, tinha cultura”. É sobre transformar esse saber tão nosso que está em todo lugar em um direito. E isso precisa ser mediado pela política pública.
Agência Brasil: Como está o cronograma em relação ao retorno da Funarte para o Palácio Capanema, aqui no Rio de Janeiro? Já existe uma previsão de conclusão das obras?
Maria Marighella: Sim! Voltaremos! Recebemos uma mensagem esta semana que até dezembro o palácio estará apto a nos receber. Primeiro queria celebrar muito, porque isso significa celebrar também a volta do Minc e a forma como a ministra Margareth Menezes está conduzindo esse sistema. Queria celebrar muito o Iphan também, que assumiu essa responsabilidade de acelerar a obra. O Palácio Capanema até outro dia estava ameaçado de ser vendido. Um patrimônio do modernismo brasileiro ameaçado por um governo privatista. Foi a força da sociedade civil que fez com que esse prédio não fosse vendido e continuasse como um patrimônio nosso. A Sala Sidney Miller, que é uma sala da Funarte, já está reformada. A assembleia dos servidores, que é uma tradição, será na sala. É uma tentativa de nos aproximarmos gradativamente do Capanema. Temos uma expectativa de fazer uma “Funarte em obras”, de voltar gradativamente algumas atividades, de promover uma nova construção da política e dos pensamentos.
Agência Brasil: Historicamente, questões estritamente econômicas costumam ganhar destaque nas transições de governo. De que forma políticas relacionada à cultura e às artes também podem contribuir nesse campo?
Maria Marighella: Eu acho muito importante tratar da dimensão econômica da cultura. A ministra Margareth Menezes falou outro dia de uma coisa muito bonita, que a cultura é uma mina de ouro do Brasil. Em um país severamente marcado por uma crise econômica, sem dúvida a cultura é um vetor do desenvolvimento econômico que pode ser ampliado. Com pouco investimento, você tem muito retorno. Os números são muito positivos em relação ao investimento e ao retorno dessa dimensão. Só que eu gosto muito de pensar naquela frase de Conceição Tavares: uma economia que não é redistributiva, ela interessa muito pouco ao desenvolvimento de um país. Eu gosto de pensar assim na dimensão econômica, mas ela não pode estar desassociada da dimensão redistributiva. Eu gosto de pensar que a cultura é uma riqueza, mas, como toda a riqueza, ela precisa ser redistribuída. Isso é muito importante em um país que viveu crises diversas – social, política, ambiental, sanitária e econômica.
A atividade cultural move bilhões no mundo. Mas não necessariamente essa dimensão redistribui. Muitas vezes há dimensões que colonizam e são concentradoras. Ao passo que a gente precisa valorizar cultura. Uma política para as artes precisa pensar não só no potencial de fomento, mecanismo de indução, mas também nas leis de amparo aos trabalhadores das artes. As questões trabalhistas, previdenciárias e de proteção social. Organizar esse sistema e fazer com que ele seja sustentável, amoroso e solidário é um desafio do século 21.
Agência Brasil: De que forma a memória do seu avô, Carlos Marighella, e de tudo o que ele representa na história do país, atravessa a sua própria trajetória? De que forma ele faz parte da construção da sua identidade?
Maria Marighella: É uma pergunta que, claro, sempre me fazem. E eu mudo a resposta, às vezes, porque estou sempre sendo surpreendida por novas dimensões. A gente nunca para de pensar sobre nós mesmos no mundo. As pessoas perguntam: “Marighella é um peso”? E eu digo: “Não, Marighella é um chão”. É algo sólido que sustenta, não pesa. É muito importante se sentir raiz de uma árvore boa do Brasil. Raiz, uma ancestralidade na dimensão da natureza de uma árvore boa. E é óbvio que quando você tem isso, não é um peso, é um chão, é um fundo, é um horizonte, é uma orientação quando tudo está muito difícil. É ter a quem recorrer em uma dimensão de ancestralidade. É muito importante, é uma força suplementar.
Óbvio que não é apenas isso. É uma responsabilidade imensa. Não se anda impune pelo mundo quando se sabe tanto. É impossível ler uma sessão da admissibilidade do impeachment e não entender que nós estávamos ali avançando por um abismo, um esgarçamento da democracia brasileira. Por isso que o bolsonarismo me indignou todos os dias, mas ele nunca me espantou. Então, a responsabilidade com a memória e com essas informações da história nos dá um horizonte de responsabilidade muito profundo e nós não pretendemos recuar dessa responsabilidade com o país. E acho que, enquanto o Brasil precisar reencontrar com a sua história, Marighella será esse horizonte que nos orientará.
Edição: Juliana Andrade