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Allan Kardec: quem foi o homem que ‘inventou’ o espiritismo
Religião
Publicado em 30/09/2022

Da maneira como ele entendia, não se tratava de ter "inventado" o espiritismo. Allan Kardec (1804-1869) considerava-se o "codificador" da ideia. Que, para ele, também não era uma religião — mas, sim, uma doutrina, compatível com a religiosidade cristã e, principalmente, com a ciência e a filosofia então preponderantes na Europa do século 19.

Kardec foi o pseudônimo adotado pelo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, notável pedagogo, professor e tradutor, na hora de sistematizar as pesquisas — consideradas como científicas por ele — sobre os fenômenos paranormais e a mediunidade.

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  • Como Allan Kardec popularizou o espiritismo no Brasil, o maior país católico do mundo
  • Escolheu ele o nome depois de uma experiência em que um suposto espírito familiar havia lhe revelado uma vida pregressa dele entre os druidas celtas da região da Gália.
  • No Brasil, a doutrina espírita kardecista encontrou solo fértil, sobretudo ao longo do século 20. A ponto de, segundo os dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geográfica e Estatística (IBGE), publicados em 2010, o espiritismo seja considerado a terceira religião com mais adeptos no país, depois do catolicismo e dos evangélicos — e, também, dos que declaram não participar de nenhuma religião.
  • Oficialmente, são mais de 3,8 milhões de praticantes da doutrina em território nacional. "Deu certo por aqui porque o espiritismo, no Brasil, desenvolveu mais o seu lado espiritual, religioso, e aqui já existia, por conta das religiões afro-brasileiras e afro-indígenas e o sincretismo que se fez no ambiente religioso, uma propensão à crença em espíritos, em entidades e seres que interferem cotidianamente na realidade, produzindo infortúnios, curas, bem-estar na população", argumenta o historiador, sociólogo e cientista da religião Marcelo Ayres Camurça, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor do livro Espiritismo em Sete Lições.
  • Em outras palavras, como salienta o pesquisador, no Brasil já hávia uma crença em espíritos anterior à própria chegada do kardecismo. E isso estava presente "em orixás, caboclos e no próprio catolicismo popular". "Quando o espiritismo chega, acontece uma adequação", afirma.
  • "O espiritismo kardecista encontra solo fértil aqui no Brasil porque a nossa matriz cultural nunca foi eminentemente racionalista, sempre foi mais emotiva e isso desemboca em uma visão religiosa mais mágica. Nesse sentido, e não há nada pejorativo aqui, lidamos com as questões de uma maneira a partir do pensamento mágico, encantado", contextualiza o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
  • "Somos adeptos de uma religiosidade do encantamento e isso de deve à nossa própria história, baseada na construção da identidade brasileira, com índios, negros e portugueses que viveram durante muito tempo aqui e foram também alimentando esses aspectos. Esse é o caldo de cultura", acrescenta ele.
  • Moraes acredita que o espiritismo acabou trazendo "uma resposta que agrada as pessoas", com "recompensas que não estão presentes em visões mais deterministas como o cristianismo". "Esse mix transformou de fato o kardecismo numa religião interessante para o universo brasileiro", analisa.
  • De curioso a teórico espírita
  • Hippolyte Rivail nasceu em família católica e, desde muito jovem, dedicou-se aos estudos, sobretudo de filosofia e ciências. Ao situar o percurso intelectual dele, é preciso ressaltar o contexto acadêmico, uma vez que eram de sua contemporaneidade o naturalista Charles Darwin (1809-1882), que apresentaria a teoria da evolução das espécies, e o filósofo Auguste Comte (1798-1857), formulador do positivismo.
  • Bacharelado em Ciências e Letras, Rivail passou a atuar como tradutor, professor e pedagogo. Foi entusiasta da democratização do ensino e chegou a oferecer aulas gratuitas em sua própria casa, em Paris.
  • Em 1854, ouviu falar pela primeira vez sobre as tais "mesas girantes", encontros mediúnicos que eram moda na França daquele tempo. Cético, atribuiu o fenômeno inicialmente não a uma força de supostos espíritos, mas a uma influência do magnetismo.
  • Quando começou a frequentar tais reuniões, como curioso, contudo, ele passou a se convencer de que algo a mais poderia haver ali. E passou a sistematizar um método científico para, no seu entendimento, comprovar se haveria fraude ou não — estabelecendo uma série de perguntas que eram feitas do mesmo modo em reuniões diferentes, a fim de buscar coerência naquilo que lhe era apresentado como obra de espíritos.
  • O pentateuco da nova doutrina
  • Já convencido de uma influência sobrenatural, ele publicou sua primeira obra, O Livro dos Espíritos, em 1857. O material é considerado o marco fundador do espiritismo kardecista. E ali ele passou a assumir o pseudônimo Allan Kardec, em referência a sua suposta vida passada mas também como forma de diferenciar a sua carreira espírita de seus trabalhos como pedagogo.
  • E é por causa dessa fundamentação teórica que Kardec se tornou tão importante. Afinal, se manifestações espíritas já eram narradas e sessões com médiuns já ocorriam, ele não "inventou" nada de novo — mas colocou no papel um método e procurou, a seu modo, explicar o que via.
  • "Ao longo da história, ocorreram muitos fenômenos ditos mediúnicos, de comunicação com espíritos. E o próprio Kardec, que ficou conhecido como líder, quase fundador, ou 'codificador' do espiritismo, ele não era médium", comenta Camurça.
  • "Mas sua curiosidade fez com que ele se tornasse o primeiro a sistematizar, vamos dizer que do ponto de vista científico, o que faziam os médiuns", explica o professor.
  • Para escrever seus livros fundamentais do espiritismo, ele passou a frequentar sessões com médiuns diferentes, aplicando perguntas sistemáticas e as compilando.
  • "Eram questões ao pretenso mundo espiritual, de toda ordem, de cosmologia, do destino da Terra e dos homens", elenca Camurça.
  • Kardec seguiria fazendo pesquisas e escrevendo livros basilares da nova doutrina, tendo publicado cinco obras até 1868. São considerados "o pentateuco" do espiritismo.
  • "Ele foi aprofundando a doutrina. Seu mérito foi ter feito as perguntas e as sistematizado", aponta Camurça.
  • Quando ele morreu, vítima de um aneurisma aos 64 anos, no ano de 1869, ele trabalhava em uma obra que procurava explicar as relações entre o magnetismo e o espiritismo. Na época, estima-se que sua doutrina já era seguida por cerca de 8 milhões de adeptos.
  • Cientificismo e teologia
  • Camurça situa o kardecismo dentro do contexto cientificista do século 19. "Ele chama o espiritismo de terceira revelação, sendo a primeira Moisés, a segunda Jesus Cristo. Esta terceira seria a revelação da modernidade, com a Terra já evoluída para receber essa doutrina que explicaria a humanidade", afirma.
  • Nesse sentido, ele mesclava ideias como a do evolucionismo — com a teoria de que a humanidade evolui porque a cada reencarnação os seres têm a chance de retornar melhores e o sentido de justiça.
  • "Ele conseguiu produzir uma doutrina que estava no espírito do seu tempo, ou seja, a modernidade que negava as religiões enquanto dogmas e acabava adequando a mentalidade religiosa a uma mentalidade científica e filosófica. Essa era a sua pretensão", explica Camurça.
  • Conforme esclarece o pesquisador, Kardec não via o espiritismo como uma religião, mas sim como uma doutrina "que combinava ciência, filosofia e espiritualidade".
  • "Como religião ele concebia as que existiam até então, principalmente na Europa Ocidental onde ele vivia, com o catolicismo e o protestantismo", conta Camurça. "Para ele, o espiritismo visava a superar dois impasses da modernidade: a religião dogmática que caia no fatalismo, na ideia de que 'as coisas acontecem porque Deus quis assim', sem buscar explicações lógicas e racionais; e a ciência ateia e utilitarista que não percebia os valores mais aprofundados da humanidade."
  • Na sua proposição, Kardec acabou trazendo uma doutrina baseada na crença dos fenômenos da vida pós-morte. "E isso é significativo, porque, a princípio, a ciência não se interessa por isso", enfatiza Camurça.
  • "Ele quis estender a ciência da época, muito positivista, a uma compreensão do mundo inefável. O que era científico mas também filosófico, porque existia uma moral por trás disso", acrescenta.
  • No kardecismo, enfatiza Camurça, "Deus é o princípio de todas as coisas, uma força vital que organiza o cosmos e tem uma moral que implica em valores de justiça".
  • - Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63087981
  • BBC
    Edison Veiga - De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
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