Sobreviventes e familiares das vítimas da boate Kiss revelam lembranças e traumas
Justiça
Publicado em 29/11/2021
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Desde 2013, a Tenda da Vigília tem lugar garantido no Calçadão de Santa Maria, bem no centro da cidade. Lá, fotos de sobreviventes estampam cartazes com dizeres. A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) veio, após o incêndio, com a missão de manter viva a memória dos que se foram.
O coletivo Kiss: que não se repita também se organizou com o mesmo propósito. Nos primeiros meses após a tragédia, notou-se na cidade certa resistência em falar sobre o acontecido. "Quando a relação com as famílias das vítimas se tornou mais próxima, esse espaço, que antes era de desabafo, também se torna um espaço para mostrar a realidade destas pessoas", explica André Polga, idealizador do coletivo e administrador da página de mesmo nome.
André conta que hoje, oito anos depois, a maior parte da audiência na rede social vem de fora do Rio Grande do Sul. "A manutenção da memória chama muito a atenção das pessoas", diz.
Para manter viva a memória de um episódio que marcou o país, os moradores de Santa Maria retomaram um ritual realizado há oito anos. No último sábado, 27 de novembro, integrantes da AVTSM promoveram uma caminhada nas proximidades da Boate Kiss. Desde o incêndio, em 2013, a passeata ocorria no dia 27 de cada mês. O ato foi suspenso durante a pandemia e voltou na semana passada, às vésperas do julgamento do caso em Porto Alegre. Os passos pelas ruas de Santa Maria buscam encontrar justiça.
O pequeno grupo caminhou por três quadras. Os manifestantes fincaram 242 cruzes — número de mortos no incêndio ocorrido na Kiss — perto do viaduto Evandro Behr. Ao chegar em frente à antiga boate, os participantes assistiram a projeção de imagens das vítimas.
Fuligem
Enquanto uma parte dos moradores de Santa Maria se mobilizam em busca de respostas para o que aconteceu naquele 27 de janeiro de 2013, o passado insiste em resistir no cotidiano da cidade. Tal qual uma cicatriz com a qual a comunidade terá de aprender a aceitar e superar.
Na movimentada Rua dos Andradas, na altura do número 1925, a porta, hoje pintada de preto, é fechada com dois fortes cadeados. Na fachada, o letreiro Kiss ainda se impõe. O prédio, que foi centro da maior tragédia do Rio Grande do Sul, segue com a estrutura intocada há oito anos, tal qual uma cicatriz da dor vivida.
Olhos curiosos param para ler as pinturas de protesto feitas por coletivos da cidade. A mensagem "Kiss: 8 anos de impunidade", em letras garrafais, pode ser lida de longe. Dentro da boate, as marcas e memórias do que foi vivido naquele verão ainda espantam: o fogo deixou boa parte das paredes, antes cor-de-rosa, pintadas de preto. Há espelhos e vidros quebrados por toda parte.
À esquerda de quem entra, o caminho para o palco, onde o fogo começou, é tortuoso. O chão e o forro do teto já cedem. Muitas paredes contém rachaduras. No interior da boate, tudo parece que pode desabar a qualquer momento — exceto as barras de ferro que impediram dezenas de pessoas de saírem da boate a tempo. Estas seguem firmes no chão.
Um lugar antes tomado por músicas e luzes de festa, hoje, vê se impor a escuridão e o silêncio. Dentro da estrutura só se ouve o barulho dos carros que passam do lado de fora. Em uma das mesas próximas ao palco, resta colado na estrutura o nome de quem reservou o lugar para assistir ao show da banda Gurizada Fandangueira: Thais.
A fuligem que toma conta do interior da estrutura atrapalha, mas não impede que vejamos a dor estampada no centro da cidade de Santa Maria. Passado o julgamento, marcado para começar em 1º de dezembro, em Porto Alegre, o prédio deve ser demolido para dar lugar a um memorial para as vítimas e sobreviventes.
Desapropriado pela prefeitura de Santa Maria em 2017, o prédio que guarda os escombros da tragédia aguarda a demolição para a criação de um memorial. Ainda em 2018, após cinco anos do incêndio, foi promovido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e pela Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes (AVTSM) o Concurso Público Nacional de Arquitetura para o Memorial às Vítimas da Kiss.
O projeto escolhido na ocasião foi do escritório Motta e Zene Engenharia e Arquitetura, de São Paulo (SP), representado pelo arquiteto Felipe Zene Motta. Trata-se de um espaço plano, com um jardim florido no centro da exposição. A construção do memorial estava orçada, em 2018, em R$ 2,5 milhões. Ainda não há data para início do projeto.
Um lugar antes tomado por músicas e luzes de festa, hoje, vê se impor a escuridão e o silêncio. Dentro da estrutura só se ouve o barulho dos carros que passam do lado de fora. Em uma das mesas próximas ao palco, resta colado na estrutura o nome de quem reservou o lugar para assistir ao show da banda Gurizada Fandangueira: Thais.
A fuligem que toma conta do interior da estrutura atrapalha, mas não impede que vejamos a dor estampada no centro da cidade de Santa Maria. Passado o julgamento, marcado para começar em 1º de dezembro, em Porto Alegre, o prédio deve ser demolido para dar lugar a um memorial para as vítimas e sobreviventes.
Desapropriado pela prefeitura de Santa Maria em 2017, o prédio que guarda os escombros da tragédia aguarda a demolição para a criação de um memorial. Ainda em 2018, após cinco anos do incêndio, foi promovido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e pela Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes (AVTSM) o Concurso Público Nacional de Arquitetura para o Memorial às Vítimas da Kiss.
O projeto escolhido na ocasião foi do escritório Motta e Zene Engenharia e Arquitetura, de São Paulo (SP), representado pelo arquiteto Felipe Zene Motta. Trata-se de um espaço plano, com um jardim florido no centro da exposição. A construção do memorial estava orçada, em 2018, em R$ 2,5 milhões. Ainda não há data para início do projeto.
Na próxima quarta-feira, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul inicia o julgamento do Caso Kiss. Quatro réus serão julgados: os sócios Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann; e os músicos Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Desde o último domingo, o Correio publica uma série de reportagens sobre o episódio.
Especial Boate KissEspecial Boate Kiss(foto: Renan Mattos/Esp.CB/D.A.Press)
Naquele 27 de janeiro, algo chamava a atenção de Gabriel Rovadoschi, 27 anos. Na fila para entrar na boate, já era possível notar que o movimento estava maior do que na noite anterior. Gabriel, que esteve presente tanto na festa da sexta quanto na do sábado, chegou a comentar com os amigos que o ambiente interno estaria lotado. Era uma das primeiras vezes que o estudante universitário saía para curtir a noite.
Dentro da boate Kiss, na confusão do incêndio, Gabriel só percebeu que não se tratava de uma briga quando a fumaça chegou até ele. “Coloquei a camiseta tapando a boca e o nariz, segurei o ar e busquei a saída”, relembra. Gabriel foi levado pelo empurra-empurra da multidão até a porta. Ao chegar na rua, deparou-se com um cenário de guerra. “Não tinha onde eu fosse pisar para sair da boate que eu não pisasse em alguém. Eu tive que escolher em quem eu ia pisar para conseguir escapar”, conta, com pausas para processar as lembranças dolorosas daquela noite.
Tanto Gabriel quanto Luismar Model, funcionário da Kiss (leia o relato dele abaixo), estavam cientes do risco de vida que correram naquela noite. Mesmo assim, quando a lista com o nome dos mortos passou de 200, a dor e a culpa invadiram e passaram a fazer parte da vida destes dois sobreviventes.
Oito anos depois, Gabriel acredita que esses sentimentos dolorosos precisam ser ressignificados para a vida seguir. Há um mês ele optou por morar na mesma rua da boate, em um prédio de onde é possível enxergar parte da estrutura que ficou. “Foi uma forma de recomeçar, de enfrentar tudo”, conta.
Especial Boate Kiss(foto: Renan Mattos/Esp.CB/D.A.Press)
Luismar Model, 34 anos, trabalhava em um dos quatro bares da Kiss naquela noite. Ele se encontrava no principal, que era o mais próximo da saída, quando o fogo começou. Inicialmente Luismar e os colegas pensaram se tratar de uma briga, até sentirem o cheiro da fumaça. “Eu recordo do pessoal quebrando as garrafas de cerveja nas mesas e se espetando para conseguir abrir caminho para sair. Virou selva, instinto de sobrevivência”, conta.
Com medo de que pudesse haver uma explosão, Luismar pulou o balcão do bar, que ficava na altura do peito. “Tenho flashes de uma colega esticando os braços e pedindo que a puxasse. Falei para ela pular, mas ela não conseguiu. Não tive como resgatar ela de lá”, relembra. O ex-funcionário estima que, além desta colega, outros 15 funcionários não conseguiram sair a tempo.
“Era muito calor, e assim que eu saí e passei a mão no rosto saiu preta, de tanta fuligem”, descreve. Ele chegou a respirar um pouco da fumaça tóxica no interior da boate. “O ar parecia que entrava cortando as narinas e a garganta.”
Luismar transmite para a afilhada o amor e a admiração que sentia pelo amigo que faleceu no incêndio. João Aloisio Treulieb era chefe do bar da boate e deixou a esposa grávida de sete meses. Quando Luismar foi internado no hospital para se recuperar da inalação da fumaça, Patrícia, a viúva do amigo, foi visitá-lo e o convidou para ser padrinho de Joana. A filha de João e Patrícia nasceu em 29 de março de 2013, pouco mais de dois meses após a tragédia.